TIRADENTES E IMAGINÁRIO SOCIAL NOS ANOS 1970*
Quando se tratava do passado, nem sempre a postura das lideranças mineiras - Rondon Pacheco, Aureliano Chaves e Francelino Pereira - era de crítica e oposição. A reverência às datas cívicas reforçava esta premissa. Neste sentido, o discurso das lideranças mais uma vez estava de acordo com o regime militar, pois nesta época se insistia em temáticas nacionalistas e no culto aos símbolos nacionais, por isso, aliás, ocorreu a criação de disciplinas nas escolas como Moral e Cívica e OSPB.
As comemorações das datas cívicas eram utilizadas para confirmar o passado (ou a construção de um passado...). Tratava-se de inventar tradições. Esta expressão foi utilizada por Eric Hobsbawm. De acordo com este autor:
"Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado."(1)
Esta preocupação com o passado está associada ao próprio exercício do poder. Ou seja, de acordo com Baczko,
"o poder deve apoderar-se do controle dos meios que formam e guiam a imaginação coletiva. A fim de impregnar as mentalidades com novos valores e fortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizar um simbolismo e um ritual novos."(2)
Neste sentido, uma das datas cívicas mais comemoradas foi o 21 de Abril - Tiradentes -, por se tratar de um mito mineiro que tinha projeção nacional. José Murilo de Carvalho mostrou em seu livro A Formação das Almas como foi o processo de construção de imagens deste mito a partir da Proclamação da República, "cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos."(3)
Importantes fatores levaram a escolha de Tiradentes como um dos símbolos da República. Primeiro, tratava-se da questão geográfica. Ou seja, "Tiradentes era o herói de uma área que, a partir da metade do século XIX, já podia ser considerada o centro político do país - Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele buscou, num primeiro momento, tornar independentes."(4) Mais do que isso, a associação de um mito cívico - afinal, tratava-se de um patriota que lutava pela independência da nação - com o apelo religioso garantia a imagem de Tiradentes uma aceitação popular. Aliás, a imagem das pinturas que procuravam representá-lo como Cristo estava baseada em alguns elementos:
"O fato de não ter a conjuração passado à ação concreta poupo-lhe ter derramado sangue, ter exercido violência contra outras pessoas, ter criado inimigos. A violência revolucionária permaneceu potencial. (...) A violência real pertenceu aos adversários. Foi vítima não só do governo português e de seus representantes, mas até mesmo de seus amigos. Vítima da traição de Joaquim Silvério, amigo pessoal, o novo Judas. E vítima dos outros companheiros da conspiração, que, como novos Pedros, se acovardaram, procuram lançar sobre ele toda a culpa. Culpa que ele assumiu de boa vontade. (...) Explicitamente, como Cristo, a quem quis imitar na nudez e no perdão ao carrasco, incorporou as culpas, as dores e os sonhos dos companheiros e dos compatriotas."(5)
A partir destes termos - revolucionário, culpa, vítima, perdão - poderia se construir um mito que servisse para a integração da nação, mas que representava também libertação. Em outras palavras, "a tentativa de transformar Tiradentes em herói nacional, adequado a todos os gostos, não eliminou totalmente a ambiguidade do símbolo. O governo republicano tentou dele se apropriar, declarando o 21 de abril feriado nacional e, em 1926, construindo a estátua em frente ao prédio da Câmara. Os governos militares (...) foram mais longe. A Lei de 1965 declarou Tiradentes patrono cívico da nação brasileira e mandou colocar retratos seus em todas as repartições públicas. Durante o Estado Novo, foram representadas peças de teatro, com apoio oficial, exaltando a figura do herói. (...) Mas a esquerda também dele não abriu mão, desde os jacobinos até os movimentos guerrilheiros da década de 70, um dos quais adotou seu nome."(6)
Em suma, apesar da figura de Tiradentes ser ambígua, e portanto ser utilizada de diferentes maneiras, seja pela direita ou pela esquerda, foram os governos e as elites que mais se preocuparam em reafirmá-la enquanto símbolo da nação brasileira, pois havia uma preocupação em controlar e usar os chamados símbolos nacionais. Em outras palavras, utilizando uma citação de Bronislaw Baczko, podemos perceber a origem dos símbolos em uma comunidade e a atuação das elites:
"O nascimento e difusão dos signos imaginados e dos ritos coletivos traduzem a necessidade de encontrar uma linguagem e um modo de expressão que correspondam a uma comunidade de imaginação social, garantindo às massas, que procuram reconhecer-se e afirmar-se nas suas ações, um modo de comunicação. Por outro lado, contudo, esse simbolismo e esse ritual fornecem um cenário e um suporte para os poderes que sucessivamente se instalam, tentando estabilizar-se. Com efeito, é significativo que as elites políticas se deem rapidamente conta do fato de o dispositivo simbólico ser um instrumento eficaz para influenciar e orientar a sensibilidade coletiva, em suma, para impressionar e eventualmente manipular as multidões."(7)
Neste sentido, entende-se porque a ditadura militar deu especial atenção a confirmação do mito de Tiradentes. Aliás, os governos mineiros (do período) tiveram uma contribuição importante neste aspecto.
(*) Este texto faz parte da tese de doutorado e do livro: Minas Gerais na Ditadura Militar: Lideranças e Práticas Políticas (1971-1983), Uberlândia: Rápida Editora, 2002, p. 89-91.
NOTAS
(1) Eric HOBSBAWM. Introdução: A invenção das tradições. In.: Eric HOBSBAWM. E Terence Ranger, A invenção das tradições, p. 22.
(2) Bronislau BACZKO. Imaginação Social. In.: Enciclopédia Einaudi. V. 5: Anthyopos – Homem, p. 302.
(3) José Murilo de Carvalho, A formação da almas: o imaginário da República no Brasil, p. 10.
(4) Ibidem, p. 67.
(5) Ibidem, p. 68.
(6) Ibidem, p. 71.
(7) Bronislau BACZKO, Op. Cit., p. 324.
Quando se tratava do passado, nem sempre a postura das lideranças mineiras - Rondon Pacheco, Aureliano Chaves e Francelino Pereira - era de crítica e oposição. A reverência às datas cívicas reforçava esta premissa. Neste sentido, o discurso das lideranças mais uma vez estava de acordo com o regime militar, pois nesta época se insistia em temáticas nacionalistas e no culto aos símbolos nacionais, por isso, aliás, ocorreu a criação de disciplinas nas escolas como Moral e Cívica e OSPB.
As comemorações das datas cívicas eram utilizadas para confirmar o passado (ou a construção de um passado...). Tratava-se de inventar tradições. Esta expressão foi utilizada por Eric Hobsbawm. De acordo com este autor:
"Por ‘tradição inventada’ entende-se um conjunto de práticas, normalmente reguladas por regras tácitas ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado."(1)
Esta preocupação com o passado está associada ao próprio exercício do poder. Ou seja, de acordo com Baczko,
"o poder deve apoderar-se do controle dos meios que formam e guiam a imaginação coletiva. A fim de impregnar as mentalidades com novos valores e fortalecer a sua legitimidade, o poder tem designadamente de institucionalizar um simbolismo e um ritual novos."(2)
Neste sentido, uma das datas cívicas mais comemoradas foi o 21 de Abril - Tiradentes -, por se tratar de um mito mineiro que tinha projeção nacional. José Murilo de Carvalho mostrou em seu livro A Formação das Almas como foi o processo de construção de imagens deste mito a partir da Proclamação da República, "cuja finalidade era atingir o imaginário popular para recriá-lo dentro dos valores republicanos."(3)
Importantes fatores levaram a escolha de Tiradentes como um dos símbolos da República. Primeiro, tratava-se da questão geográfica. Ou seja, "Tiradentes era o herói de uma área que, a partir da metade do século XIX, já podia ser considerada o centro político do país - Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo, as três capitanias que ele buscou, num primeiro momento, tornar independentes."(4) Mais do que isso, a associação de um mito cívico - afinal, tratava-se de um patriota que lutava pela independência da nação - com o apelo religioso garantia a imagem de Tiradentes uma aceitação popular. Aliás, a imagem das pinturas que procuravam representá-lo como Cristo estava baseada em alguns elementos:
"O fato de não ter a conjuração passado à ação concreta poupo-lhe ter derramado sangue, ter exercido violência contra outras pessoas, ter criado inimigos. A violência revolucionária permaneceu potencial. (...) A violência real pertenceu aos adversários. Foi vítima não só do governo português e de seus representantes, mas até mesmo de seus amigos. Vítima da traição de Joaquim Silvério, amigo pessoal, o novo Judas. E vítima dos outros companheiros da conspiração, que, como novos Pedros, se acovardaram, procuram lançar sobre ele toda a culpa. Culpa que ele assumiu de boa vontade. (...) Explicitamente, como Cristo, a quem quis imitar na nudez e no perdão ao carrasco, incorporou as culpas, as dores e os sonhos dos companheiros e dos compatriotas."(5)
A partir destes termos - revolucionário, culpa, vítima, perdão - poderia se construir um mito que servisse para a integração da nação, mas que representava também libertação. Em outras palavras, "a tentativa de transformar Tiradentes em herói nacional, adequado a todos os gostos, não eliminou totalmente a ambiguidade do símbolo. O governo republicano tentou dele se apropriar, declarando o 21 de abril feriado nacional e, em 1926, construindo a estátua em frente ao prédio da Câmara. Os governos militares (...) foram mais longe. A Lei de 1965 declarou Tiradentes patrono cívico da nação brasileira e mandou colocar retratos seus em todas as repartições públicas. Durante o Estado Novo, foram representadas peças de teatro, com apoio oficial, exaltando a figura do herói. (...) Mas a esquerda também dele não abriu mão, desde os jacobinos até os movimentos guerrilheiros da década de 70, um dos quais adotou seu nome."(6)
Em suma, apesar da figura de Tiradentes ser ambígua, e portanto ser utilizada de diferentes maneiras, seja pela direita ou pela esquerda, foram os governos e as elites que mais se preocuparam em reafirmá-la enquanto símbolo da nação brasileira, pois havia uma preocupação em controlar e usar os chamados símbolos nacionais. Em outras palavras, utilizando uma citação de Bronislaw Baczko, podemos perceber a origem dos símbolos em uma comunidade e a atuação das elites:
"O nascimento e difusão dos signos imaginados e dos ritos coletivos traduzem a necessidade de encontrar uma linguagem e um modo de expressão que correspondam a uma comunidade de imaginação social, garantindo às massas, que procuram reconhecer-se e afirmar-se nas suas ações, um modo de comunicação. Por outro lado, contudo, esse simbolismo e esse ritual fornecem um cenário e um suporte para os poderes que sucessivamente se instalam, tentando estabilizar-se. Com efeito, é significativo que as elites políticas se deem rapidamente conta do fato de o dispositivo simbólico ser um instrumento eficaz para influenciar e orientar a sensibilidade coletiva, em suma, para impressionar e eventualmente manipular as multidões."(7)
Neste sentido, entende-se porque a ditadura militar deu especial atenção a confirmação do mito de Tiradentes. Aliás, os governos mineiros (do período) tiveram uma contribuição importante neste aspecto.
(*) Este texto faz parte da tese de doutorado e do livro: Minas Gerais na Ditadura Militar: Lideranças e Práticas Políticas (1971-1983), Uberlândia: Rápida Editora, 2002, p. 89-91.
NOTAS
(1) Eric HOBSBAWM. Introdução: A invenção das tradições. In.: Eric HOBSBAWM. E Terence Ranger, A invenção das tradições, p. 22.
(2) Bronislau BACZKO. Imaginação Social. In.: Enciclopédia Einaudi. V. 5: Anthyopos – Homem, p. 302.
(3) José Murilo de Carvalho, A formação da almas: o imaginário da República no Brasil, p. 10.
(4) Ibidem, p. 67.
(5) Ibidem, p. 68.
(6) Ibidem, p. 71.
(7) Bronislau BACZKO, Op. Cit., p. 324.